por Graziela Andreatta
A cada troca de sinal, motoristas e pedestres estabelecem uma relação que deve ser encarada como convivência, e não como oposição
Ayrton Lobo é um homem simples e modesto. Ingênuo e talvez um pouco ignorante. Não estudou muito, trabalha como uma espécie de faz-tudo para a casa de comércio Sá, Pato & Cia, e tem uma ambição: comprar um carro. Mas o que move Ayrton não é puramente o desejo de ter um automóvel. É a cobiça de poder “esmagar” os “pobres e assustadiços” pedestres.
Esse homem divide a humanidade em duas castas, a dos pedestres e a dos “rodantes”, como apelidou os motoristas. E ele definitivamente odeia pertencer à primeira. Segundo Ayrton, o pedestre “é um ser inquieto de pouco rendimento, forçado a gastar a sola das botinas, a suar em bicas nos dias quentes, a molhar-se nos dias de chuva e operar prodígios para não ser amarrotado pelo orgulhoso e impassível rodante, o homem superior, que não anda, mas desliza veloz.”
Ayrton, felizmente, não existe. É o personagem principal do único romance adulto publicado por Monteiro Lobato, O Presidente Negro, de 1926, quando o trânsito brasileiro era ainda bem diferente, mas já trazia consigo conceitos de classe e segregação. Era a ficção sinalizando uma realidade que só viria a se agravar: a da difícil convivência entre pedestres e motoristas.
Em Caxias do Sul, existem 145.851 automóveis, 23.150 motocicletas e 1.381 ônibus, segundo os dados mais atualizados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), com base nos cadastros de emplacamento. Juntas, essas três categorias somam 170.382 veículos. Se a elas forem acrescentadas caminhonetes, caminhões, reboques e outros tipos de veículos menos comuns, o número chega a 218.924.
Não há dados sobre pedestres para se fazer um comparativo. Mas, se levarmos em conta que a Viação Santa Tereza (Visate) transporta, por dia, cerca de 165 mil passageiros e que até quem dirige um carro se transforma em pedestre a partir do momento em que estaciona o veículo, a quantidade de gente que anda a pé é bem maior do que a de quem, como descreveria Ayrton, “circula sobre quatro pneus”. Mas essa superioridade numérica não se reflete em vantagem.
A Secretaria Municipal de Trânsito e Transportes calcula que uma pessoa precisa de um segundo para dar cada passo ao atravessar uma rua. Em uma via como a Sinimbu, seriam necessários 13 segundos para se chegar de uma calçada à outra. Mas ninguém tem esse tempo. Quando não há tráfego na rua principal, o das perpendiculares rapidamente reivindica seu espaço. Ao pedestre, cabe correr.
O office boy Jader Luis Pereira de Medeiros, 20 anos, dribla carros e sinais da região central da cidade há três anos e aconselha: “Não dá pra ratear. Se vê que dá pra atravessar a rua tem que apressar o passo. Do contrário, ou não atravessa, ou é atropelado”.
Jader garante que aprendeu que a faixa de segurança é o melhor lugar para cruzar a via, porque andar fora dela pode enraivecer motoristas mais impacientes. “Tem motorista que acelera de propósito quando enxerga o pedestre. É melhor não arriscar.”
A Secretaria Municipal de Trânsito e Transportes não tem levantamento oficial sobre quais são os pontos de travessia e circulação mais perigosos. Segundo o secretário Jorge Spinelli Dutra, as medidas de segurança são reforçadas a partir da observação dos técnicos da prefeitura e também das queixas de pessoas e associações de moradores. “Claro que nós sabemos que todo o Centro é complicado e que algumas vias de acesso aos bairros também. O que podemos fazer para melhorar estamos fazendo.”
De acordo com Dutra, estão em andamento na cidade 12 grandes obras de trânsito, como a remodelação na entrada do bairro Desvio Rizzo, o acesso à UCS e as mudanças na Rua Moreira César e na Avenida Rio Branco, além de mais de 50 outras menores. Todas trarão benefícios aos pedestres, segundo ele. “Nosso objetivo é fazer o tráfego fluir melhor e mais rápido. Mas temos consciência de que essas mudanças podem dificultar a travessia e, por isso, estamos reforçando a sinalização para quem precisa atravessar a rua, e não só para quem passa por ela.”
O secretário informa que em 30 cruzamentos foram instaladas sinaleiras para pedestres, que são acionadas automaticamente ou quando a pessoa aperta um botão (o tipo do equipamento depende do ponto onde foi colocado). Nesses lugares, a sinaleira fica vermelha para os carros de todos os sentidos por alguns segundos, conforme a largura da via. É o caso dos cruzamentos da Rua Pinheiro Machado com a Visconde de Pelotas e a Dr. Montaury, por exemplo.
Mas Dutra afirma que as sinaleiras não podem ser usadas em toda a cidade, principalmente no Centro. Ele argumenta que na Pinheiro Machado é possível porque a rua não tem engarrafamentos do porte de outras vias essenciais, como Os 18 do Forte e Sinimbu. “Se eu parar a Sinimbu por mais 13 segundos, vou parar Caxias.”
A travessia difícil não é exclusividade do Centro. Há diversos outros lugares perigosos – e esta reportagem nem está levando em conta as rodovias. A Rua Matteo Gianella é um deles. Além de ser acesso para diversos bairros, recebe o movimento de carros e pessoas do Colégio Santa Catarina. Frentista do posto de combustíveis localizado quase em frente à escola, Ivan Paim, 52 anos, conta que em alguns horários a situação é complicada para todos que tentam cruzar a Matteo, de carro ou a pé. “Aqui tem batida toda a hora. Hoje de tarde mesmo deu uma”, relatou na terça-feira (20). “Quem quiser atravessar a rua tem que ser ligeiro”, completou.
Na Avenida Bom Pastor, as funcionárias de uma farmácia dizem que às vezes precisam esperar até 10 minutos para ir de um lado ao outro da via. Isso ocorre porque só há uma sinaleira, no cruzamento com a Perimetral Sul. “Colocaram um quebra-molas e deu uma melhorada para os pedestres, mas agora são os carros que se acidentam. Uns minutos antes de você chegar teve um que bateu na traseira do outro em cima do quebra-molas”, contou a balconista Sabrina Canquerino Santos, 29 anos, naquela terça-feira. “Tinha que ser como algumas ruas em Canoas. Você levanta o braço e os motoristas param para você atravessar”, contou a colega Tauana Cristina Gehlen, 18 anos.
Situações parecidas ocorrem também em trechos de ruas como a Luiz Michelon, a Moreira César e a Avenida São Leopoldo. Mas Dutra afirma que, mais do que intervenção do poder público, esses lugares precisam de bom senso por parte de quem os utiliza. “Não posso colocar um semáforo porque 10 minutos por dia tem travessia. O que tem que acontecer é motoristas e pedestres começarem a fazer sua parte e respeitar a faixa de segurança.”
De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, sempre que houver faixa de segurança e o sinal estiver aberto para o pedestre, é por esse local que a rua deve ser atravessada – e não pelo meio da quadra, como muitas pessoas ainda acreditam ser mais seguro. Os motoristas devem dar a preferência.
Entretanto, quem está acostumado a circular pela cidade sabe que não pode levar a lei ao pé da letra. O auxiliar administrativo Fabrício Bellaver Guimarães, 28 anos, que gasta cerca de 50 minutos por dia em deslocamentos entre sua casa, no bairro Rio Branco, e o trabalho, no Centro, já adotou uma regra: “Eu só atravesso a rua se os carros estiverem parados, mesmo que o sinal esteja fechado para eles e eu esteja na faixa de segurança, porque nunca sei se eles vão realmente frear”.
Fabrício admite que, assim como não é fácil para ele, também não é para os motoristas, pois nem todos os pedestres utilizam a faixa. Na opinião dele, os dois são culpados, mas perdem muito tempo responsabilizando um ao outro em vez de fazer sua parte. “Todo mundo tem pressa, ninguém quer esperar, e todos se acham meio donos da rua.”
Na verdade, para transitar em segurança, o melhor é cuidar sempre. Inclusive na calçada. Roseli Mazzochi Ribas, 39 anos, varredora da Rua Visconde de Pelotas há quatro anos, garante que os pedestres também são perigosos. Trabalhando em um trecho movimentado, ela precisa prestar atenção nos carros e nas pessoas que andam a pé. “Se você estiver distraída, elas te atropelam mesmo.”
Enquanto explicava como era varrer o meio-fio e as calçadas nesse ponto do Centro, ela ia desviando dos passantes que atravessavam a rua correndo e mantinham quase o mesmo ritmo ao atingir o outro lado. Seguiam com a pressa e a determinação de quem está disposto a ir eliminando obstáculos, mesmo que eles sejam outras pessoas. “Acredito que o problema no trânsito esteja na falta de respeito de alguns motoristas e também de alguns pedestres. As pessoas são muito individualistas”, diz Roseli.
Se o individualismo cresceu na proporção dos carros nas cidades, talvez seja difícil dizer. Na obra de Monteiro Lobato, muitas décadas atrás, ele já era registrado como um ingrediente do trânsito. O personagem Ayrton, que muitas vezes precisou correr para fugir de atropelamentos e dos buzinaços – que ele interpretava como gritos de “Arreda, canalha” –, demonstrou não se preocupar com os pedestres, mas apenas consigo mesmo. Quando conseguiu comprar o seu primeiro automóvel, imediatamente assumiu a posição dos “rodantes” e passou a desprezar quem andava a pé. “Paguei diversas multas, matei meia dúzia de cães e cheguei a atropelar um pobre surdo que não atendera ao meu insolente ‘arreda’”, confessava.
O taxista caxiense aposentado João Isoton, 81 anos, diz que já não se impressiona com a urgência que move quem anda a pé ou de carro – nem com suas consequências. Do banco do ponto de táxi da Rua Marquês do Herval, em frente à Praça Dante Alighieri, com as mãos apoiadas na bengala, hoje observa tudo com apatia. Foi taxista por 54 anos, quase sempre naquele ponto. Só abandonou a profissão em 27 de dezembro do ano passado, por causa de uma dor nas pernas e da pressão da mulher, que não queria mais vê-lo se arriscando. “Quando eu comecei a trabalhar com o táxi não tinha uma sinaleira na cidade, tinha bem menos carros, menos pessoas, e já era assim”, relata.
Isoton diz que agora só pega o carro de vez em quando, aos finais de semana. “A última vez que eu peguei o auto foi no domingo, para ir buscar um galeto. Fazia um mês que eu não dirigia.” Apesar da saudade do trabalho, ele confessa que já estava perdendo a paciência com o trânsito e seus personagens. “Tem motorista abusado, que se você para e deixa um pedestre passar já começa a buzinar, e tem pedestre sem-vergonha. Às vezes eu chegava bem perto pra dar um sustinho, pra ver se ele prestava mais atenção”, confidencia Isoton.
O “sustinho” e outros métodos politicamente incorretos, porém, em nada têm ajudado na pedagogia do trânsito. Ao contrário, só aumentam a tensão entre motoristas e pedestres. O Código de Trânsito Brasileiro, criado em 1997, vem tentando resolver esses problemas. Além de medidas de controle mais rígidas, o CTB reconheceu a importância da educação para melhorar a relação entre pedestres e motoristas.
Graças ao código, as regras básicas de convivência no trânsito estão ganhando mais espaço na preparação dos novos motoristas. Nas aulas teóricas dos Centros de Formação de Condutores (CFCs) essas lições já ocupam mais espaço do que as imagens de acidentes de trânsito, que até um tempo atrás, acreditava-se, seriam a melhor maneira de conscientizar motoristas – ideia que se mostrou equivocada: milhares de cenas de acidentes foram estampadas nos noticiários, mas o número de mortes continuou crescendo.
A legislação a partir de 1997 também forçou a introdução do tema nas escolas. Em Caxias, a educação para o trânsito faz parte do currículo nos colégios municipais. O vereador Vinicius de Tomasi Ribeiro (PDT), ex-secretário dos Transportes e com formação em Arquitetura e Urbanismo, acredita que esse seja o melhor caminho para solucionar os conflitos existentes hoje. “Acho que vai acontecer com o trânsito, no futuro, o que aconteceu com o meio ambiente nos anos 80. O caminho passa pelas crianças, os adultos do futuro.”
Vinicius reconhece que o poder público tem obrigação de instalar equipamentos de segurança, mas destaca que ele não consegue obrigar as pessoas a seguirem as sinalizações e as regras de bom senso. “Acredito que a palavra-chave para uma boa convivência seja respeito”, define.
Quanto a Ayrton, o personagem de Monteiro Lobato, acidentou-se e perdeu o carro. Sofreu tanto que chegou a dizer que preferia ter perdido um braço só de pensar em seu retorno miserável à casta dos que andavam a pé. Durante sua recuperação, porém, deslumbrou-se com outras maquinações da trama – mais especificamente, com uma máquina que mostrava o futuro – e esqueceu seu ódio de pedestres. Por vias tortas e involuntariamente, Ayrton até que enfim deixou um bom exemplo: quem quiser pensar no futuro precisa pôr de lado as desavenças – especialmente no trânsito.
Da 21ª edição impressa
Fonte:
http://ocaxiense.com.br/2010/04/no-caminho-do-transito-seguro/ (acessado em 26/04/2010)