Irene Rios
Este estudo faz parte de uma
pesquisa realizada com estudantes da Educação de Jovens e Adultos – EJA - do
Ensino Médio relacionada a percepção sensível sobre a campanha audiovisual “Bebida e direção. O efeito do álcool passa, a culpa fica para
sempre”, uma peça
publicitária pertencente à Campanha promovida pelo Ministério das Cidades em parceria
com o Denatran.
Lançada no dia 19 de dezembro de 2011,
a campanha teve como meta reverter o quadro de violência no trânsito que marca
as comemorações de fim de ano, quando o número de acidentes causados pela
embriaguez aumenta muito.
A campanha “Bebida e direção. O efeito do
álcool passa, a culpa fica para sempre” foi divulgada em todo o território nacional por meio de filmes
publicitários para TV, spots para rádio, peças gráficas, materiais para mídia
exterior, sites e redes sociais.
As peças publicitárias foram dirigidas
a todos os segmentos da sociedade com o objetivo de sensibilizar as pessoas com
as tragédias causadas pela combinação de bebida e direção. (BRASIL, 2011).
Vídeo - Depoimento - Bebida e
direção. “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”
Trata-se de um filme com duração de 30 segundos, baseado em fatos reais, que reproduzem o depoimento emocionado de um motorista narrando que tem uma culpa que irá levar por toda sua vida. Na festa da empresa bebeu e achou que estava bem para dirigir. Perdeu a noção de velocidade, invadiu a calçada e atropelou uma criança de cinco anos. Ele descreve que ficou desesperado, que tentou socorrer e que os olhinhos assustados da criança não saem de sua cabeça. Faz as seguintes reflexões: “Quantos sonhos eu destruí! Por que eu fui beber e dirigir? Uma criança...” O vídeo termina com a imagem e o áudio do lema da campanha “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”. O estilo desse vídeo pode ser classificado, segundo os estilos de Lima (2009), como emotivo, pois apresenta o depoimento emocionado de uma pessoa que se envolveu em uma violência viária que teve como consequência a morte de uma criança.
A campanha dá ênfase ao depoimento
do personagem, apresentado após ter cometido uma infração que teve como consequência
a morte de uma criança. O depoimento, de acordo com os sujeitos da pesquisa,
demonstra o sentimento de culpa do infrator, como podemos observar nas falas
que seguem:
“Vi um homem
psicologicamente abalado pelo fato de cometer um erro que trouxe graves
consequências.” (Sujeito 16).[2]
“Um homem desesperado por
ter dirigido bêbado e ter atropelado uma criança, arrependido e se sentindo
culpado.” (Sujeito 21).
As expressões de tristeza apresentadas pelo personagem
protagonista do filme demonstram desespero e arrependimento. Novaes (2005, p.
61) esclarece que a culpa é descrita, muitas vezes, por sensações como “peso”,
“que mói por dentro”, “que corrói”, “que tortura”.
O motorista,
personagem da campanha, sente-se responsável pela morte da criança. Ele tem
consciência de que foi imprudente ao dirigir sob a influência de álcool e
demonstra sua culpa e arrependimento. Conforme Pompeia e Sapienza, com a culpa surge o
remorso:
É aquele molestar insistentemente com
pensamentos e sentimentos desagradáveis, uma sensação de que alguma coisa não
foi como devia e a gente tem algo a ver com isso. Esse sentimento pode ser mais
preciso ou mais difuso, pode ser identificado com clareza, mas traz sempre um
mal-estar. (POMPEIA; SAPIENZA,
2004, p. 89).
Os autores esclarecem, ainda, que a
culpa vem acompanhada do sentimento de vergonha e de uma sensação de conflito,
“eu e mim mesmo” ou “eu e minha ação”. (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p. 91). Eles explicam que, na
experiência de culpa, aparecem sentimentos como: “deveria ter tido mais
cuidado”; “ter avaliado melhor a situação”; “Enfim, lido sempre, de um lado,
com o que fui capaz de ser e, de outro, com o que sinto que gostaria de ter
sido capaz de ser.” (POMPEIA;
SAPIENZA, 2004, p. 95).
Por isso a sensação de culpa pode
levar a pessoa ao desespero. Esse desespero, provocado pelo sentimento de
culpa, faz parte da história literária. Pompeia e Sapienza (2004, p. 95) relembram a tragédia de Édipo,
escrita por Sófocles, no século V a. C. Édipo matou um desconhecido sem saber
que era seu pai. Casou-se com sua mãe e teve filhos com ela, também sem saber
que sua esposa era sua mãe. Ao conhecer sua verdadeira identidade, Édipo
desespera-se e fala: “Oh! Ai de mim! Tudo está claro! Ó luz, que eu te veja
pela derradeira vez! Todos agora sabem: tudo me era interdito: ser filho de
quem sou, casar-me com quem me casei... e... e... eu matei aquele a quem eu não
poderia matar!” (SÓFOCLES, 2005, p. 86). Ao ver que sua mãe e esposa
suicidou-se, Édipo, tomado pela culpa e pelo desespero, castiga-se furando seus
olhos, tornando-se assim cego pelo resto da vida.
Os sentimentos de culpa e de
arrependimento demonstrados na declaração do motorista que dirigiu sob influência
de álcool e atropelou e matou uma criança, causaram comoção nos sujeitos da
pesquisa. Muitos afirmaram terem sentido tristeza ao assistir ao vídeo, como
demostram suas falas a seguir:
“É realmente triste saber que muitas pessoas hoje cometem
esse crime [...]”. (Sujeito
7).
“Eu senti um drama muito forte porque ele teve um sentimento
de culpa.” (Sujeito 13).
“Fiquei triste por ele ter atropelado e sem querer tirado a
vida de uma criança.” (Sujeito
21).
A comoção está relacionada às
emoções e indica sensibilidade, uma característica do ser humano relacionada
aos sentidos. Com a contemporaneidade, muitas vezes a sensibilidade vem sendo
esquecida, até em nosso próprio lar, conforme descreve Duarte Jr.
[...] a nossa casa veio deixando de ser um lar, no
sentido de constituir uma extensão de nossas emoções e sentimentos, veio
deixando de ser um lugar expressivo da vida de seus moradores e da cultura onde
se localiza. Foi se transformando, nesta expressão difundida, numa “máquina de
morar”, fria e estritamente utilitária, sem o aconchego e o afeto de uma
verdadeira morada. (DUARTE JR., 2001, p. 91).
Essa falta de sensibilidade, descrita por
Duarte Jr., vai além da nossa casa, acontece também em outros ambientes como:
na escola, no cinema e no trânsito. Em
se tratando do último, parece que os acontecimentos cotidianos são cenas de
ficção, que a violência que acontece diariamente nas vias não é real. Esquecemos,
assim, que os automóveis são guiados por seres humanos - parece que são apenas
máquinas, sem sentimentos.
No entanto, podemos identificar nas falas dos
sujeitos da pesquisa suas percepções sensíveis sobre o tema. É possível
observar que, ao assistirem o depoimento do motorista imprudente sobre sua
tristeza e arrependimento, eles se apropriaram dos seus sentimentos, permitindo
a fluidez das emoções. Essa apropriação é perceptível, também, em algumas
respostas dadas sobre a situação em que o filme fez pensar:
“No caso, me fez pensar que, imagina se fosse o meu filho.” (Sujeito
12).
“Esse filme me fez pensar cada vez que vou
para as baladas e dirijo sob efeito de álcool e que, muitas vezes, ainda faço
isso em alta velocidade.” (Sujeito 13).
“Quando ele relatou o fato, imaginei quantas
pessoas saem para se divertir e não voltam, por imprudência de outras pessoas.”
(Sujeito 19).
“Num atropelamento que meu marido fez, mas ele não tinha bebido.”
(Sujeito 20).
“Na dor que a família da criança estava sentindo.”
(Sujeito 23).
Podemos notar que muitos relataram situações
relacionadas à imprudência e à violência no trânsito. Alguns inclusive
colocaram-se no lugar do motorista imprudente ou da vítima. A morte da criança foi considerada o ponto
forte do filme pela maioria dos sujeitos da pesquisa.
A criança representa
o futuro da nação. Ela é um ser desprotegido e frágil, que precisa de cuidados
e que tem seus direitos. Nos artigos 15, 16 e 17 do Estatuto da Criança
e do Adolescente (Brasil, 1990), está destacado que a criança e o adolescente
têm direito à vida, ao respeito, à dignidade, à saúde, a ir e vir e estar com
segurança em locais públicos.
Esses
direitos não estão sendo garantidos às crianças e aos
adolescentes. A cada dia, há menos
segurança para esses seres transitarem, seja a pé, de bicicleta, ou de veículo
automotor. Essa insegurança tem resultado no aumento de mortes e feridos no
trânsito, envolvendo crianças e adolescentes.
Segundo
dados do Observatório Nacional de Segurança Viária,
Houve um aumento no número de ocorrências de
trânsito registradas envolvendo crianças e adolescentes no primeiro semestre de
2013, se comparado com o mesmo período do ano passado. Na faixa de 0 a 7 anos,
o aumento foi de 24%, passando de 2.560 para 3.178. Já na faixa etária de 8 a
17 anos, o aumento foi ainda maior: passou de 8.839 para 11.461, um crescimento
de 30%. (ONSV, 2013).
Muitas crianças e
adolescentes estão se ferindo ou perdendo a vida no trânsito, por
irresponsabilidade dos adultos, que, provavelmente sem medir as consequências,
cometem todo tipo de infração, como a citada no vídeo A. Os adultos têm o dever
de cuidar da criança e do adolescente, conforme estabelecido no Art. 18 do ECA: “É dever de todos velar
pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer
tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
(BRASIL, 1990).
A morte de um ser desprotegido pela falta de
responsabilidade de um adulto provocou a sensibilidade nos participantes. Assim
sendo, representar situações que envolvam crianças pode ser uma referência a
futuras campanhas educativas para o trânsito.
Os sujeitos da pesquisa
informaram, ainda, que a mensagem deixada pela campanha foi “Se beber não
dirija”. Esse resultado vai ao encontro do objetivo da campanha: Depoimento -
Bebida e direção. “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”, ou
seja, “[...] sensibilizar as pessoas com as tragédias causadas pela combinação de
bebida e direção” (BRASIL, 2011).
A atitude de dirigir sob o efeito de álcool
representa uma grande irresponsabilidade, com consequências irreparáveis,
conforme observamos no vídeo em questão. Campanhas que orientam a população
sobre os riscos de beber e dirigir são fundamentais. Os sujeitos da pesquisa
demostraram perceber isso nos depoimentos, justificando a importância da
mensagem deixada pela Campanha: Depoimento - Bebida e direção. “O efeito do álcool passa, a
culpa fica para sempre”, conforme algumas
falas a seguir:
“[...] tem pessoa que acha que saiu de uma festa alcoolizada e está bem
para dirigir, isso é uma falta de pensamento.”
(Sujeito 2).
“Talvez
com esta mensagem as pessoas se conscientizem e obedeçam às leis do nosso
País.” (Sujeito 7).
“[...]
muitos ainda não respeitam os sinais de trânsito e ainda continuam sob o efeito
de álcool dirigindo. Matam e se matam e, muitas vezes, vão até presos por isso
e acabam também perdendo o veículo e multados por isso.”
(Sujeito 13).
“[...] para mostrar as consequências de álcool e direção, pois as duas
coisas não podem andar juntas.” (Sujeito 21).
As justificativas confirmam que os sujeitos da
pesquisa avaliaram positivamente esse tipo de campanha educativa para o
trânsito. Com base nas respostas provindas da pesquisa, é possível deduzir que o
Vídeo mexeu com a sensibilidade da maioria dos estudantes da Educação de Jovens
e Adultos participantes da pesquisa. Grande parte dos informantes demonstrou
uma percepção sensível para a campanha educativa, percebendo as consequências
das infrações de trânsito e manifestando sua indignação com a violência viária.
Cabe,
aqui, uma reflexão sobre a importância da percepção sensível, proporcionada
pela campanha educativa em análise, e sua relação com o inteligível. Duarte Jr.
esclarece-nos que “‘[...] o ‘sensível’ é o objeto próprio do conhecimento
sensível, assim como o ‘inteligível’ é o objeto próprio do conhecimento
intelectivo.” (DUARTE JR., 2001 p. 15). Mas qual a importância da integração do
sensível com o inteligível para a segurança viária? Conforme Duarte Jr. (2001,
p. 225), “[...] talvez a valorização do sensível e a busca de sua integração
com o inteligível possa consistir num pequeno e primordial passo rumo a tempos
menos brutais e permeados de maior equilíbrio entre as muitas formas de vida
conhecidas”. Desta forma, quem sabe, a integração do sensível com o inteligível
possibilite a reflexão e a aprendizagem sobre as maneiras coerentes de se
comportar ao transitar nas vias.
No entanto, para que haja a
integração entre o sensível e o inteligível, Maffesoli explica que: “É para dar
conta disso que o intelectual deve saber encontrar um modus operandi que
permita passar do domínio da abstração ao da imaginação e do sentimento ou,
melhor ainda, de aliar o inteligível ao sensível”. (MAFFESOLI, 1998, p. 304).
Com base nessa citação de
Maffesoli, podemos interpretar que a culpa será vista, também, como um
indicador de aprendizagem se houver a integração do sensível com o inteligível.
Assim sendo, para promover a segurança no trânsito, é importante considerar o modus operandi[3]
no planejamento das campanhas educativas, a fim de proporcionar a sensibilidade
por meio da conexão entre o sensível e o inteligível. Cabe, aqui, o argumento
de Novaes sobre a culpa, sentimento em destaque na campanha em análise. “[...]
a culpa também pode ser entendida como parte da experiência humana, como um
guia. Nesse sentido é vista de forma positiva, funcionando como um indicador e
como um meio de aprendizado”. (NOVAES,
2005, p. 61).
REFERÊNCIAS
BRASIL.
Departamento Nacional de Trânsito / Ministério das Cidades.
Parada: Pacto Nacional
pela Redução de Acidentes / campanhas. Depoimento
- Bebida e direção. “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”. 2012a. Disponível em: <http://www.paradapelavida.com.br/campanhas/bebida-e-direcao-o-efeito-do-alcool-passa-a-culpa-fica-para-sempre-dezembro-de-2011/>. Acesso em:
27 fev. 2013.
DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos sentidos. Curitiba:
Criar, 2001.
MAFFESOLI, Michel. Elogio
da Razão Sensível. Petrópolis: Vozes, 1998.
NOVAES, Maria Helena
(Org.). As gerações e lições de vida:
aprender em tempo de viver. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.
ONSV. Observatório Nacional de Segurança Viária. Aumenta o número
de ocorrências indenizadas envolvendo crianças e adolescentes no trânsito em
todo país. 2013. Disponível
em: <http://www.onsv.org.br/ver/aumenta-o-numero-de-ocorrencias-indenizadas-envolvendo-criancas-e-adolescentes-no-transito-em-todo-pais>. Acesso em: 9 dez.
2013.
POMPEIA, João
Augusto; SAPIENZA, Bilê Tatit. Na
presença do Sentido - Uma aproximação fenomenológica a questões
existenciais básicas. São Paulo: EDUC/Paulus, 2004.
SÓFOCLES. Rei Édipo. Tradução: J. B. de Mello e Souza. Versão e-Book. E-Book
Brasil.com. Fonte digital. Digitalização livro em papel. Clássicos Jackson.
Vol. XXII – 2005.
Irene Rios
Mestra em Educação, com a pesquisa:
CAMPANHAS EDUCATIVAS PARA O TRÂNSITO: a percepção sensível de jovens e adultos;
Especialista em Ambiente, Gestão e Segurança de Trânsito e em Metodologia de
Ensino; Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa;
Consultora e co-autora do projeto “Gincana Cultural de Trânsito”, vencedor do
XII Prêmio Denatran de Educação no Trânsito - 2012 - na categoria
"Educação no Trânsito - Projetos e Programas"; Presidente da Câmara
Catarinense do Livro; Professora universitária de disciplinas na área de
Educação para o Trânsito; Autora de artigos e livros sobre Educação para o
Trânsito.
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